sexta-feira, 5 de abril de 2019

ENQUANTO HÁ TEMPO - POR MARCELO HENRIQUE





Malas no carro, é hora de partir. Novo destino nos espera, para alguns momentos longe da rotina, em família. Oportunidade aguardada para reabastecer energias para os embates da vida, que virão adiante. Pai, mãe e filho, sorriso no rosto, brilho no olhar, aquela expectativa boa em relação ao por vir. 

A música agradável embala a viagem e as conversas são soltas e descompromissadas, o que não quer dizer que não sejam úteis e produtivas. 


A intimidade familiar, as descobertas da criança, as orientações dos pais,muitas histórias a partilhar.



Em um dado pedaço da estrada, algo curioso me atrai o olhar. Diminuo um pouco a velocidade e observo os traços que vão ficando mais nítidos. A imagem borrada vai se definindo. É um ser humano. Uma mulher que está vestida de branco e, curiosamente, traz às costas um par de asas,artificialmente colocado. Simboliza um anjo. Em suas mãos, um cartaz em que se lê:




 - Arrependei-vos enquanto há tempo! 

Sigo o meu caminho e o vulto vai ficando cada vez mais longe, pelo retrovisor. Mas, minha mente ali permanece e minha perplexidade, também. 


Chego a comentar com minha esposa sobre a cena, que ela não havia observado.A memória, incrível artefato, esse HD natural que todos os Espíritos possuem, por obra da sabedoria divina, ao nos criar, todos, simples e ignorantes, rumo à perfeição, remonta a alguma passagem bíblica. Ela está,por exemplo em Atos dos Apóstolos (3:19), livro do Novo Testamento, em uma passagem que indica a necessidade de mudanças, com vistas ao porvir. 
Continuo a pensar sobre o peso que as passagens bíblicas têm na vida das pessoas. Em religiões ou crenças, sobretudo as cristãs, que se baseiam nos livros que atravessam séculos, qual o efeito que objetivam produzir nas criaturas? Sabe-se que a fé é o principal elemento neste contexto, sem que,necessariamente, haja logicidade ou racionalidade nas prescrições de teor mandamental religioso. 





Fico pensando na motivação daquela mulher ao travestir-se de anjo, com até algum capricho, e ficar ali, sob a luz do sol de inverno, várias horas do dia, sujeita seja às intempéries, seja à poluição atmosférica e sonora de uma rodovia muito movimentada, ou aos riscos de sofrer, talvez, algum acidente ou, até, uma ameaça de quem não tenha a mesma crença. 

A que público objetiva tal mensagem? Entre as centenas de automóveis, 

ônibus e caminhões e um número maior de pessoas, neles embarcados, será que irá fazer alguém despertar e acatar a mensagem? Provocará alguma mudança qualitativa no existir? Será “ouvida” e “entendida” pelo público? 
A formação cultural, religiosa, familiar, educacional, social de uns ou de outros provocará, por certo, reações as mais diversas. Haverá os que passarão pela cena sem se aperceber do conteúdo. Outros que farão gracejos diante de tão bizarra cena. Uns que, por suas ideologias, discordarão frontalmente do “meio” e da “mensagem”. E alguns, ainda, por estarem ambientados àquela fé, concordarão e apoiarão a iniciativa. 
Mundo plural esse nosso. Que comporta tantos níveis distintos de entendimento e de reação ante as situações da vida. Que permite, talvez,para uns, o exercício da racionalidade objetiva e subjetiva, para aproveitar deste – e de outros acontecimentos – algo que seja útil, bom e verdadeiro.



 



O que diz a Doutrina dos Espíritos sobre esta temática. Como é tratado o arrependimento na Filosofia Espírita? Teria, o arrependimento à luz do Espiritismo a mesma conotação, o mesmo significado, a mesma simbologia que estão contidas na cena que descrevi no início desta crônica? 

É fato que a expressão arrependimento aparece em muitos trechos da obra Kardeciana. Na “Revue Spirite”, por exemplo, há várias dissertações assinadas por Inteligências Superiores, outras anônimas e exortações de Kardec em relação ao arrependimento sincero, motivado pela mudança qualitativa de atitudes. E há, também, trechos da base fundamental espírita, contidos, por exemplo, em “O livro dos espíritos”, que merecem nossa atenção. 









O livro quarto desta obra, em seu capítulo II, parte VI, trata da “expiação e arrependimento”. Nas perguntas 990 e seguintes, Kardec procura pontuar como seria o arrependimento (físico e espiritual), onde se sobressai a elevação de sentimentos e o desejo sincero, seja o de reparar males que se cometeu, seja o de aperfeiçoar condutas, progressivamente. 



Conhecendo as prédicas, homilias, orientações e práticas de distintas 

religiões ou crenças, todas respeitáveis, percebe-se uma grande diferença em relação ao formato do arrependimento, ainda que a essência – inclusive no trecho atribuído seja a Jesus seja aos seus seguidores mais próximos, os apóstolos – possa ser similar. 

Arrepender-se, assim, simboliza o sentimento íntimo de auto-reprovação de atos realizados e o desejo de reparação de seus efeitos. Tarefa individual,é claro, que pertence ao universo íntimo espiritual de cada um, sem a necessidade de prescrições e controles das agremiações religiosas ou de quem quer que seja. 



O arrependimento conforme preconizado pelas religiões, embora endereçado ao plano sensorial-cognitivo e com reflexos desejados no procedimento do indivíduo, acaba figurando, quase sempre, como o cumprimento de meras obrigações mandamentais religiosas, como por exemplo a confissão, a penitência e a freqüência às atividades da congregação. Em alguns casos,dependendo da pessoa, pode simbolizar alguma melhora íntima e de efeitos externos, materializando algum progresso. 





No caso espírita, não há censores, nem juízes, a não ser a nossa própria consciência. Como Agostinho, que preconizou a necessidade do exame diário,da introspecção e da análise dos diversificados atos do dia, no momento imediatamente anterior ao do repouso físico, para o compromisso sincero como cultivo das virtudes e a superação dos defeitos, no próximo despertar,devemos estar abertos ao “arrependimento espiritual” como primeiro passo para a verdadeira transformação que é nosso objetivo nas andanças espirituais. 
Para tal, não precisamos de ninguém, seja na casa espírita, seja nos trajetos rotineiros, a segurar qualquer cartaz e a vestir-se com paramentos angelicais ou representativos de personalidades espirituais orientadoras. 
Nossa bússola é a lógica racional, o entendimento da dinâmica das Leis Espirituais e a permanente disposição para o crescimento espiritual. 










E quanto ao tempo? Este é inexaurível. É permanente. Atravessa séculos,milênios e encarnações sucessivas. Quanto antes despertarmos, menos tempo estaremos sujeitos ainda a tantos tropeços e mais próximos da verdade. Cada um a seu turno, no seu passo, no seu ritmo. Há tempo!



Marcelo Henrique, é advogado, espírita, escritor, palestrante, divulgador da Doutrina Espírita de acordo com Allan Kardec, é colaborador deste blog há 05 anos.

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