terça-feira, 16 de março de 2021

OS LADRILHOS HÃO DE SABER - Por Marcelo Henrique

 


Os ladrilhos vermelhos, surrados pela ação do tempo e por tantas pisadas, de anos em sequência, no Largo da Praça da Alfândega, por certo carregam muitas memórias.


De lá para cá ou de cá para lá, todos os dias, milhares de pares de pés - ou, até, sem serem dois - sapatearam em ritmos mais ou menos frenéticos, na busca de tantos afazeres cotidianos.

O solo firme da área pública já "se pagou", porquanto o povo dele vem se servindo há tantas décadas, tendo o Poder Público, vez por outra, envidado esforços para a melhoria ou revitalização da área, para que continue com serventia por muito mais tempo.

Semanas antes, o vai-e-vem se acentuou com a programação de mais um grande evento. Toldos e barracas, estruturas metálicas, balcões e paredes foram ganhando corpo e colorido, para recepcionar outros interessados.

De longe se divisa a saudação hospitaleira - característica do povo gaúcho e brasileiro - a dizer: Bem-vindos!

A sensação de ser bem recepcionado onde se chega realmente não tem preço. Cativa o ser por inteiro, dando uma injeção de (bom) ânimo até nos que estejam cabisbaixos e preocupados, envoltos nas dificuldades da vida e na correria sem fim pelo (abençoado) pão de cada dia.











Quantos personagens e enredos ficarão na memória de quem passar pela Feira, nesta sua 65a. edição? Seja nos que lá estejam trabalhando, como expositores e vendedores, seja nos clientes-leitores, haverá pelo menos uma (boa) história para guardar e contar, certamente...

Diviso, ao longe, um senhor que não cabe em si de tanta felicidade. Seus cabelos brancos "denunciam" anos à frente, de experiência e vivências mil. O sorriso bordado no rosto é a expressão maior do contentamento, de quem ri de si mesmo, de quem exala satisfação e bem-estar.

Aproximo-me e vejo ele abraçado a alguns livros, com títulos vários e formatos distintos, multicoloridos e com atrativos em suas capas.

Ele me olha, parecendo querer contar o que sente e o que viveu. João Carlos é o seu nome, setenta primaveras nos ombros. Estivador aposentado, completa a renda familiar atuando como guardador de carros nas regiões do entorno. Até pouco tempo atrás, não sabia ler e foi aluno dedicado no Programa de Alfabetização de Adultos, de uma conhecida empresa nacional que dedica-se a oferecer oportunidades a adolescentes e adultos, pela instrução formal.

A vida dura, de quem perdeu o pai precocemente e, para ajudar a mãe, viúva, no sustento familiar, lhe provoca o olho marejado. Aos dez anos de idade já estava na construção civil.

Os anos passavam e ele se via muito incomodado por não poder ler nem o letreiro da condução diária, no percurso lar-trabalho-lar. Se sentia cego, mesmo não o sendo!

Até que quase seis décadas depois de começar a trabalhar, ainda criança, um bom espírito soprou ao seu ouvido, por intermédio de um cliente do estacionamento do Mercado Público de Porto Alegre, justamente quando ele, numa conversa informal, confidenciou o desejo de aprender a ler. O cliente conhecia o programa e incentivou-o não uma, mas várias vezes, a procurar as aulas gratuitas do programa.

A alma boa ainda lhe presenteou, semanas à frente, com cadernos, caneta e lápis. E, quando confidenciou aos filhos, em casa, sua intenção de ir às aulas, recebeu apenas desconfiança e descrédito. Aqueles jovens duvidaram que o homem velho trocaria o lazer de ver televisão à noite, no conforto do sofá de sua casa, pelas cadeiras rígidas da sala de aula.

Dedicou-se e foi premiado, ao conseguir ler sua primeira palavra - mãe. Inês, a genitora, falecida há cinquenta anos, fez o calejado homem chorar de saudade e, ao mesmo tempo, de alegria. Ela seguramente estaria orgulhosa do filho, naquele instante...

A presença de João na Feira não foi ao acaso. Foram os alunos, seus colegas, no programa, quem decidiram visitar a mesma. Antes, porém, como tarefa de classe, cada um deles, todos homens e mulheres feitos, tiveram uma incumbência muito prazerosa: montar uma colcha de retalhos, formada por tecidos com palavras, em que cada um deles escreveu a que representasse aquele momento e as lutas para o aprendizado. João escolheu "conhecimento". Junto a outras palavras, "esperança", "aprender", "felicidade", "acreditar", "vida" e "liberdade", entre outras, um pouco da história de cada um e das vitórias pessoais daquelas almas em transformação.

Naquele dia nublado, nosso amigo levou nos braços um conjunto de preciosidades: um Machado de Assis, um Luís de Camões, um livro de atividades para crianças - que imaginou poder completar com os netos, sentado no chão da sala de casa, e, também, um gibi da Turma da Mônica.

Mas, muito além dos exemplares literários, que suas mãos fortes apertaram com vigor, ao embarcar na condução para casa, João carregou consigo um conjunto de sensações que hão de manter viva a sua sede de conhecimento e o prazer de poder se tornar auto-suficiente no entendimento da linguagem escrita: conquista, coragem, gratidão, merecimento, prazer, reconhecimento, vitória...

Despediu-se de mim, com o mesmo sorriso da chegada...

E os ladrilhos? Testemunhas vivas da emoção do velho homem e do que ele irá contar para outrem...

***

Nota do Autor: As fotos são de Omar Freitas da Agência RBS,.

Artigo baseado em reportagem do Jornal Zero Hora, no link:

https://gauchazh.clicrbs.com.br/cultura-e-lazer/livros/noticia/2019/11/aos-70-aposentado-aprende-a-ler-e-compra-primeiro-livro-na-feira-nao-sei-se-mereco-tanto-ck2mf9yaj0d4j01r2wtx63te5.html?fbclid=IwAR1h6G4gJxY0uWYtKQsTVwmMo1lV3xivcIVpXkXvbMDHnGFwgFd_GkylEWU

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