segunda-feira, 14 de outubro de 2019

UM KARDEC SORRIDENTE - POR MARCELO HENRIQUE



Foi no já distante 1981 que eu me tornei espírita. À época, o primeiro livro de Kardec que tivemos em nossa casa, trazia o desenho do rosto de Kardec, e era “O livro dos Espíritos”. 





Na verdade, todos os livros editados pela Federação Espírita Brasileira tinham a mesma capa, com Kardec ao centro. Só variava a cor e, é claro, o título da obra. Uma a uma, as capas coloridas foram ocupando lugar nas estantes e eu e meus familiares os utilizávamos com frequência.
Levávamos o livro citado para a reunião de estudos, que era numa quarta-feira à noite. E, a cada palestra – eram às segundas e quintas e nós procurávamos não faltar a nenhuma delas, tal a sede de conhecimento que tínhamos – em casa íamos folhear os demais livros, sempre que o palestrante fazia alguma referência ou citação. Esse exercício, creiam os leitores, fez-nos avançar bastante na teoria espírita básica, porque da busca inicial de uma ou outra citação, em dado capítulo ou item, a leitura dos demais, que a rodeavam, eram consequentes.


Todos os dias Kardec me fitava. E eu olhava para ele, tentando entender o que havia de tão especial naquele homem. Aos poucos, acessando biografias e textos escritos sobre ele, sua personalidade, suas atividades não-espíritas e também aquelas que ele coordenou e desenvolveu na nascente Doutrina Espírita, ia descortinando as facetas daquele grande homem. 

Mas, uma coisa me intrigava. Por que Kardec nunca sorria? 




E não eram apenas as capas de livros daquela editora. Toda e qualquer imagem de Kardec, seja em quadros nas instituições, seja em ilustrações de livros, jornais ou revistas espíritas sempre traziam um Kardec taciturno, sisudo, quase zangado. Lembro-me de questionar alguns dirigentes e expositores, sobretudo aqueles com quem eu, aos poucos, acabava tendo proximidade e afinidade. Alguns deles me diziam que era uma característica da época, os quadros e desenhos – já que não havia, ainda, o acesso fácil à fotografia, recém-inventada (1839) – e os retratos, além de muito caros eram bem raros. A opção era, então, o retrato-desenho ou o retrato-pintura e, quase sempre, com a expressão “fechada”. 

Fui, então, me acostumando ao Kardec “bravo”, de feições graves, compenetradas, como se somente esta sisudez refletisse a seriedade e a excelência de sua missão de Codificador do Espiritismo. Ou como se, de alguma forma, houvesse sobre seus ombros um peso gigantesco, tanto relacionado à altura de sua tarefa, quanto das incompreensões e dificuldades (externas e internas) a que ele se submeteu, em nome da verdade espírita. 

Ainda adolescente e no início da juventude, eu me perguntava: - quando é que o homem Rivail-Kardec sorriria? Será que não gargalhava? Não tinha motivos para render graças e iluminar seu belo rosto, de homem maduro de feições francesas, polido, educado e nobre em virtudes e caráter, com um largo sorriso? Não sorria, ele, na intimidade, para a bela Amélie-Gabrielle, por quem se enamorou ternamente e com quem conviveu por décadas? Não ficava contente, alegre, quando lhe contavam algo positivo, ou quando ouvia, numa roda de amigos do círculo de seus ofícios, como professor, cientista, magnetizador, alguma anedota? Não sorria com a satisfação do dever cumprido, como quando realizava atividades de benemerência, distribuindo alimentos e roupas aos desvalidos de Paris? 

Então... 

Onde é que estaria o Kardec sorridente? Não precisaria ser o homem de gargalhadas espalhafatosas, um galhofeiro ou piadista, alguém que não tivesse, sequer, equilíbrio nas emoções. Longe disso! 

O que o jovem Marcelo Henrique desejava – e, até, com entusiasmo e expectativa – era encontrar uma imagem de um Kardec esboçando um leve sorriso. Anos e anos, décadas se passaram e... nada! 

Até que um belo dia, em atividades da Comunicação Social Espírita, a que me afiliei desde 1987, quando editei o primeiro periódico espírita, bem rudimentar e artesanal, quando estava eu na faculdade de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina, o “Harmonia”, que nasceu ‘Boletim Informativo” e depois se tornou “Revista Espírita”, já como militante da Associação Brasileira de Divulgadores do Espiritismo (Abrade), conheci o querido e saudoso Alamar Régis de Carvalho, a quem apelidei carinhosamente de “O Boca-de-Trombone”. O porquê do apelido? Simples, o doce e barulhento Alamar dizia o que pensava, sem rodeios. Era direto. Às vezes, duro. Mas transparente, honesto, defensor da fidelidade a Kardec e um porta-voz da observância estrita dos postulados espíritas. 

Foi no final da década de 90 que Alamar me fez ter contato com uma figurinha de um Kardec sorridente. Um amigo dele, estudante de artes visuais, havia preparado a ilustração, que ele passou a exibir e divulgar como uma de suas “marcas”. Depois, uma outra imagem também passou a ser veiculada por ele, mostrando Kardec sorridente envolto por muitas crianças de tenra idade. Aquilo tudo me marcou positivamente. Os meus sonhos juvenis se concretizaram. Ali estava, em cores, um Kardec real, bem próximo de nós, com a estampa da felicidade na face. Como nós fazemos em tantos momentos de nossas trajetórias, não é mesmo? 

Olho para o movimento espírita, que integro há quase quarenta anos, e vejo muitos homens e mulheres sisudos. Vejo muitas expressões pesadas, carregadas. Vejo uma rigidez excessiva, como a castrar os sentimentos de abertura que o riso (e os sorrisos abertos e espontâneos) carrega em si. Vejo ambientes taciturnos, pesados, em reuniões e atividades espíritas, como se seriedade não se coadunasse com alegria (de viver e externar sentimentos). 





Há um contingente muito grande de espíritas que parece carregar nos próprios ombros, braços e mãos, todas as “dores do mundo”, como se as dificuldades do Plano de Provas e Expiações, como se as mazelas espirituais que fazem parte, ainda, de nossas atmosferas psíquicas, como se o errar, cair e levantar, não fosse a tônica de todos os que passam, atualmente, pelo orbe. E que a opção pela “cara fechada”, quase um rompante ou uma máscara de aparente seriedade, fosse melhorar a ambiência planetária e conduzir as pessoas às melhoras possíveis. 

Por isso, sempre que posso, sempre que participo de atividades espíritas, seja uma palestra, um seminário, um curso, um encontro de debates, uma reunião de estudos ou de trabalhos, um fórum, um congresso, procuro portar um sorriso no rosto – autêntico – e falar de coisas alegres e, porque não, divertidas. Uma piada bem contada, no momento oportuno, uma jocosidade bem aproveitada para tirar uma lição valiosa, são elementos de pedagogia e de convencimento. Experimente, você, também, e verá os resultados. 


Mais recentemente, todos nós espíritas tivemos a feliz oportunidade de estarmos diante de um Kardec real. Não que tenha sido uma iniciativa pioneira, já que filmes ou documentários sobre o Mestre Lionês são listados por sites e são descritos pelos cinéfilos espíritas. Mas, em 2019, Wagner de Moraes nos brindou com a filmagem de “Kardec, a história por trás do nome”, e nos apresentou ao Kardec fisicamente real, vivo, sorridente, humano, na “pele” de Leonardo Medeiros, o ator escolhido para a performance cinematográfica. 

Leonardo foi primoroso ao “encarnar” o Professor Rivail em seus dois momentos da história: como Rivail, o pedagogo e cientista. E como Kardec, o Codificador, o homem da Ciência Espírita. Nas variadas cenas da história baseada na obra biográfica de Marcel Souto Maior, primorosa, também, por sinal, podemos ver um Kardec sereno ou agitado; preocupado e aliviado; triste e alegre; incisivo na defesa de ideias e amoroso; decepcionado e exultante; um Kardec que chorou e riu. Riu muito das conquistas, dos medos vencidos, ou de situações que aproximam o Mestre de cada um de nós, seus discípulos. Um Kardec que teve tempo para contemplar, junto à amada Gabi, as estrelas do firmamento, com poesia, música, risadas e contentamento. 

Olho para o que me rodeia, tanto nas plataformas das redes sociais como na vida “ao vivo” e ainda vislumbro um sem-número de espíritas que se parecem com aquele Kardec retratado nas capas de livros federativos da década de 1980. E isso me entristece. Porque nem a mensagem espírita nem a de Jesus de Nazaré, em que se apoia, são mensagens carregadas de rancor, do peso da amargura, do silêncio da tristeza, expressões de faces acabrunhadas e desmotivadas. 

A mensagem espírita é de alegria e de contentamento. 




O Yeshua de J.-J. Benítez (“Operação Cavalo de Tróia) guarda muita similitude com o Rivail de Moraes-Medeiros, no filme. Ambos sonharam e realizaram. Ambos se entristeceram e se alegraram. Exultaram diante de realizações e lamentaram os fracassos e as incompreensões. Mas sem, jamais, perder a essência humana, que o aprendizado de cada dia propicia: fazer, experimentar, ousar e ser feliz! 


Um Kardec sorridente me fita, quando termino este despretensioso artigo...



Marcelo Henrique, é advogado, escritor, espírita, divulgador da doutrina espírita em Santa Catarina e em todo o Brasil, é colaborador deste blog.

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